terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Mais um pra coleção

 
 
   Sentia falta da bebida. Não me lembrava da última vez que havia passado dois dias seguidos sem botar nada de álcool pra dentro. Não me lembrava da última vez em que passaraum dia sem beber nada. Às vezes isso me deixava preocupado. Não queria me preocupar com isso. Não queria me preocupar com o que diziam sobre o cigarro e a bebida. Odiava quando tocavam no assunto. Eu só queria esquecer toda essa propaganda que te fazem acreditar que sabem o que é certo.
    Eu já tinha problemas o suficiente para me preocupar, não queria me preocupar com os meus vícios, não agora. Mas insistiam - tanto as propagandas, que eram mais fáceis de evitar, quanto as pessoas, essas mais difíceis de controlar - em repetir, que nem papagaios, as propagandas. Outra coisa que me agoniava eram os produtos light, diet, zero, sem açúcar. Mulheres com essas frescuras eu já estava acostumado a ver. Desde criança via boa parte das mulheres fazendo dietas e tomando refrigerantes dietéticos. Tudo bem. De uma hora pra outra, virou febre. Homens, mulheres, crianças, todos submetendo-se ao slogan: “Sejais saudável e tereis uma vida longa; senão morrereis de câncer”. E te olham como um câncer. Mais uma forma de controle: a busca da longevidade e do corpo perfeito. A busca da neurose e do corpo imperfeito; é isso que conseguem. E, assim como uma doutrina, religião ou culto, tentam te impor os padrões e te ameaçam. Da mesma forma como já fui “ameaçado” por um evangélico: “Quem não se entrega a Deus não alcança o reino dos céus”. Mesma coisa.
    Como já não bastassem os problemas que eu criava pra mim, eu ainda tinha que cultivar as neuroses dos outros, que volta e meia emergiam em minha mente. Era uma briga constante tentar expulsá-las. Problemas, na verdade, eu não tinha nenhum; mas sabe como é, qual a graça de viver sem problemas? O Veríssimo, Luís Fernando, escreveu uma ótima crônica na Folha de São Paulo a respeito. Não lembro o nome. Tratava de um cara que acordou e viu que tinha alguma coisa errada em sua vida, pois tudo corria bem, e quando, no final do conto, surgiu um problema, ele se contentou e sentiu que, agora, estava tudo bem. Então eu criava os meus problemas. Problemas com mulheres; e problemas com o medo de fracassar perante qualquer situação. Eu queria deixar a vida fluir, eu era expert nessa arte.  Ou pelo menos achava que era. Ia vivendo e as coisas iam acontecendo. Tudo acabava bem no final. E tem acabado até agora. Mas eu preciso criar problemas, preciso das minhas neuroses. Se eu não for neurótico, vou ser o quê? Psicopata, perverso, histérica?
   

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Aonde mais eu poderia estar?

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Num hotel de loucos
Na sala de estar
Dum hotel de loucos
Clichê me encontrar

Onde fico rouco
De tanto gritar
Fico louco
E posso me matar

Fico oco
Sem me julgar
Não me dizem “bobo”
Se não regular

Onde foi ao encontro
Meu último bem-estar
Num hotel de loucos
Na sala de estar.

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Quem pretende ler 1984 não deveria ler este texto


    “Nos encontraremos num lugar onde não há escuridão”, disse O’Brien a Winston. O que não se passava pela cabeça de Winston era que a falta de escuridão é pior que o próprio breu; que o excesso de luz cega de maneira ofensiva – muito pior que qualquer trevas. Winston ficou aliviado, afinal de contas O’Brien era realmente seu aliado; era contra o sistema que enegrecia e corrompia e distorcia, de forma sorrateira, a história do país em que viviam.
    Winston não suportava - apesar de participar do processo - a idéia de os fatos serem distorcidos de acordo como melhor se enquadravam no momento político do país. Ele fazia parte disso, era cúmplice: redigia e reescrevia os fatos todos os dias; e os livros e jornais antigos eram queimados, para não haver dúvidas de qual versão era a verdadeira. Sabia que tinha algo de errado com o país em que vivia; ou seria com ele? O’Brien lhe tirou a dúvida: se alguém, tão lúcido e altivo como O’Brien, também achava que tinha algo errado, que o modo como as coisas funcionavam não deveriam ser assim, talvez, ou quase certo, Winston não estava ficando louco.
    Sentiu uma mistura de alívio com euforia; ele era sano; e o mundo, insano. Precisa, agora, dar um jeito de comunicar-se com O’Brien, de aliar-se a ele. Se O’Brien acreditava que outro mundo era possível, outro mundo deveria ser realmente possível. Porque, para Winston, viver num mundo sem história fatídica era impossível. Ele vivia num mundo impossível. O que fazer agora para alçar o mundo possível? Certamente O’Brien saberia a resposta. E Winston estava disposto a ajudar, a se sacrificar, se fosse necessário; faria de tudo para construir um novo mundo, baseado no fato e não na ficção: um mundo não fictício, onde todos poderiam confiar nos livros de história.
    Foi feliz do trabalho para casa. Precisava contar o que ocorrera para Júlia; sua suspeita se confirmara: O’Brien era mesmo aliado, e haveria de ter um plano para a construção de um novo mundo. Afinal, O’Brien lhe dissera: “Nos encontraremos num lugar onde não há escuridão”. Chegou entusiasmado em seu apartamento. Passou a mão no telefone e ligou para Júlia – havia esquecido completamente que há de se ter extremo zelo ao falar de certos assuntos, porque a polícia poderia prendê-lo ou até mesmo matá-lo; ninguém sabia ao certo o que acontecia com os contestadores do sistema.
    Acordou num lugar claro, tão claro que não conseguia discernir de onde vinham as luzes. Não havia salas nem corredores; tudo o que se podia ver, ou tentar ver, era um galpão enorme, que não se sabia que altura, largura e comprimento tinha. Winston não sabia se Júlia também havia sido pega. Será que ele tinha estragado tudo? Será que até O’Brien se ferrou por causa daquele estúpido telefonema? Ele sabia que dificilmente os veria de novo; e que provavelmente assinara sua sentença de morte. Se pudesse faria de tudo para salvar os dois, mesmo que tivesse que sofrer por anos a fio antes de sua execução.
    Passado o susto, ele conseguiu organizar os fatos em sua mente e lembrar o que acontecera após chegar em casa e discar para Júlia.
    “Ele é nosso aliado. Ele é nosso aliado, Júlia. Certamente ele deve ter um plano. Vou falar pra ele que você também é aliada; que você também não concorda com o sistema”.
    “Cala a boca, Winston. Eu não sou contra o sistema coisa nenhuma, nem sei do que você está falando. E não me incomode mais”.
    “Tu tu tu tu...”
    Júlia sabia que Winston tinha cometido um grande erro, e previu, e acertou, o que poderia acontecer. Mas, mesmo falando daquele jeito ao telefone, ela não conseguiu escapar. Também fora pega e estava “no lugar onde não há escuridão”.
    Quinze minutos após Júlia desligar o telefone - na mesma hora Winston se deu conta da burrice que tinha feito -, bateram à porta. Ele abriu-a e bum; nem viu o que lhe atingira. Quando acordou não via nada. Se deu conta que a claridade absoluta é quão ruim ou pior que a escuridão. E, se O’Brien havia lhe dito que se encontrariam num lugar onde não há escuridão, era porque ele não era seu aliado e sim aliado do sistema. Se sentiu aliviado, porque, a qualquer sorte, mais cedo ou mais tarde, ele e Júlia haveriam de ser pegos, pois acreditariam piamente em O’Brien. E O’Brien era um agente duplo.
    Pensando melhor, Winston concluiu, ele já sabia que haveria de morrer e que sua luta contra o sistema seria em vão. Ninguém pode ganhar do sistema; o máximo que se pode fazer é aceitá-lo e assimilá-lo. Quem houvera colocado essa história de mundo justo, moral, ético, livre – mesmo porque essas construções abstratas eram tão absurdas quanto à idéia de modificar o sistema – Winston não sabia. Por que ele havia de ter esses sentimentos; essa preocupação com os proletários, com o fictício e o fatídico, com os livros de história? Enfim: por que haveria ele de se questionar tanto em vez de viver numa boa? Por que, justo agora, que estava namorando com Júlia, não se abstivera de seus ideais? Por que dar murro em ponta de faca? Chegou a conclusão que cometera suicídio, e levara junto Júlia – justamente sua grande paixão. Realmente ele não merecia viver: um ser humano que, se pudesse prever o futuro, faria o que ele fez, precisa morrer; sofrer, sofrer e morrer.
    Uma alegria cálida invadiu o corpo de Winston. Ele sorriu: afinal, o mundo era justo.


domingo, 7 de fevereiro de 2010

"liberdade: uma destas detestáveis palavras que tem mais valor do que significado" parte II, que deveria ser a parte I


    Quero dormir e ficar acordado; comer e jejuar; fixar-me e me mover; conversar e me calar. Sinto e não sinto, concomitantemente, vontade de mijar e cagar. Sou a melhor e a pior pessoa do mundo. Sou solidário; me importo com os outros. Sou egoísta; só penso no que será melhor pra mim; nada mais.    
    Necessito de um emaranhado de pensamentos, maior do que os habituais, para poder não pensar, ou poder pensar por mim com nenhuma ou menor influência externa. Só preenchendo o casulo, atordoando-o com excesso de informações, é possível ser livre de falácias externas. Antagônico? É o único jeito, pois, a partir da inserção social, a contaminação está feita, e as vozes externas e internas já não se distinguem mais.
    Preciso juntar todos os discursos, construções do âmago e do exterior, misturá-los e confundi-los ainda mais, deixando a confusão e caos tomarem conta. Porque, livrar-se de todas as retóricas, é impossível; exceto aos perversos: os únicos que se podem dizer livres.
    “Liberdade: uma destas detestáveis palavras que tem mais valor do que significado”. Cito a frase sem dizer o autor por ignorância. Li ela numa edição da Caras, na seção de pensamentos de personalidades. Voltando à citação, quero ilustrar duas possíveis hipóteses. Primeiro, a pior delas: em um mundo onde todos fossem livres (perversos) e fizessem tudo o que lhes der na telha, o caos reinaria; viveríamos na barbárie. Conclusão: concordaríamos com o pensamento citado: é impossível ser livre numa sociedade civilizada. A segunda, um pouco mais romântica, é que seria possível sermos livre, contanto que evoluíssemos a tal ponto onde não seríamos egocêntricos, abafaríamos o ego a tal ponto que sentiríamo-nos parte dum todo; conseqüentemente não sairíamos “nos” matando ou “nos” agredindo. Mas, a segunda hipótese, que a primeira vista pode parecer romântica e utópica, esconde a face da desumanização que acarreta uma perda de individualidade. Conclusão: para sermos livres precisaríamos perder a essência humana: a individualidade. O que seria uma contradição, já que para ser livre teríamos que abolir a palavra liberdade do vocabulário, pois seu sentido real deixaria de existir. Sem individualidade e capacidade de escolha “liberdade” e “livre” perderiam o sentido de serem acoplados ao dicionário. Portanto também cabe a esta hipótese a frase retirada da Caras.
    Ainda poderia abrir para mais possibilidade - que seria mais utópica que qualquer sistema socialista e capitalista já sonhados e mais abstrata que qualquer conceito de justiça ou de bom e mau – que tentarei descrever: seríamos todos livres (perversos), mas nossos sentimentos e vontades verdadeiras seriam compatíveis com o mundo civilizado e não haveria barbárie; não necessitaríamos de poderes; para tentar resumir e exemplificar o máximo que consigo: não necessitaríamos de polícia e nem nos policiarmos uns aos outros nem a nós mesmos, e também não existiriam grandes. A anarquia utópica.
    E, tentando ser livre, saí do transe. O som ainda penetrava fundo em minha mente; a caixa de som colada à orelha. E todos dançando como se espera que dancem; com medo de parecerem retardados.