segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Quem pretende ler 1984 não deveria ler este texto


    “Nos encontraremos num lugar onde não há escuridão”, disse O’Brien a Winston. O que não se passava pela cabeça de Winston era que a falta de escuridão é pior que o próprio breu; que o excesso de luz cega de maneira ofensiva – muito pior que qualquer trevas. Winston ficou aliviado, afinal de contas O’Brien era realmente seu aliado; era contra o sistema que enegrecia e corrompia e distorcia, de forma sorrateira, a história do país em que viviam.
    Winston não suportava - apesar de participar do processo - a idéia de os fatos serem distorcidos de acordo como melhor se enquadravam no momento político do país. Ele fazia parte disso, era cúmplice: redigia e reescrevia os fatos todos os dias; e os livros e jornais antigos eram queimados, para não haver dúvidas de qual versão era a verdadeira. Sabia que tinha algo de errado com o país em que vivia; ou seria com ele? O’Brien lhe tirou a dúvida: se alguém, tão lúcido e altivo como O’Brien, também achava que tinha algo errado, que o modo como as coisas funcionavam não deveriam ser assim, talvez, ou quase certo, Winston não estava ficando louco.
    Sentiu uma mistura de alívio com euforia; ele era sano; e o mundo, insano. Precisa, agora, dar um jeito de comunicar-se com O’Brien, de aliar-se a ele. Se O’Brien acreditava que outro mundo era possível, outro mundo deveria ser realmente possível. Porque, para Winston, viver num mundo sem história fatídica era impossível. Ele vivia num mundo impossível. O que fazer agora para alçar o mundo possível? Certamente O’Brien saberia a resposta. E Winston estava disposto a ajudar, a se sacrificar, se fosse necessário; faria de tudo para construir um novo mundo, baseado no fato e não na ficção: um mundo não fictício, onde todos poderiam confiar nos livros de história.
    Foi feliz do trabalho para casa. Precisava contar o que ocorrera para Júlia; sua suspeita se confirmara: O’Brien era mesmo aliado, e haveria de ter um plano para a construção de um novo mundo. Afinal, O’Brien lhe dissera: “Nos encontraremos num lugar onde não há escuridão”. Chegou entusiasmado em seu apartamento. Passou a mão no telefone e ligou para Júlia – havia esquecido completamente que há de se ter extremo zelo ao falar de certos assuntos, porque a polícia poderia prendê-lo ou até mesmo matá-lo; ninguém sabia ao certo o que acontecia com os contestadores do sistema.
    Acordou num lugar claro, tão claro que não conseguia discernir de onde vinham as luzes. Não havia salas nem corredores; tudo o que se podia ver, ou tentar ver, era um galpão enorme, que não se sabia que altura, largura e comprimento tinha. Winston não sabia se Júlia também havia sido pega. Será que ele tinha estragado tudo? Será que até O’Brien se ferrou por causa daquele estúpido telefonema? Ele sabia que dificilmente os veria de novo; e que provavelmente assinara sua sentença de morte. Se pudesse faria de tudo para salvar os dois, mesmo que tivesse que sofrer por anos a fio antes de sua execução.
    Passado o susto, ele conseguiu organizar os fatos em sua mente e lembrar o que acontecera após chegar em casa e discar para Júlia.
    “Ele é nosso aliado. Ele é nosso aliado, Júlia. Certamente ele deve ter um plano. Vou falar pra ele que você também é aliada; que você também não concorda com o sistema”.
    “Cala a boca, Winston. Eu não sou contra o sistema coisa nenhuma, nem sei do que você está falando. E não me incomode mais”.
    “Tu tu tu tu...”
    Júlia sabia que Winston tinha cometido um grande erro, e previu, e acertou, o que poderia acontecer. Mas, mesmo falando daquele jeito ao telefone, ela não conseguiu escapar. Também fora pega e estava “no lugar onde não há escuridão”.
    Quinze minutos após Júlia desligar o telefone - na mesma hora Winston se deu conta da burrice que tinha feito -, bateram à porta. Ele abriu-a e bum; nem viu o que lhe atingira. Quando acordou não via nada. Se deu conta que a claridade absoluta é quão ruim ou pior que a escuridão. E, se O’Brien havia lhe dito que se encontrariam num lugar onde não há escuridão, era porque ele não era seu aliado e sim aliado do sistema. Se sentiu aliviado, porque, a qualquer sorte, mais cedo ou mais tarde, ele e Júlia haveriam de ser pegos, pois acreditariam piamente em O’Brien. E O’Brien era um agente duplo.
    Pensando melhor, Winston concluiu, ele já sabia que haveria de morrer e que sua luta contra o sistema seria em vão. Ninguém pode ganhar do sistema; o máximo que se pode fazer é aceitá-lo e assimilá-lo. Quem houvera colocado essa história de mundo justo, moral, ético, livre – mesmo porque essas construções abstratas eram tão absurdas quanto à idéia de modificar o sistema – Winston não sabia. Por que ele havia de ter esses sentimentos; essa preocupação com os proletários, com o fictício e o fatídico, com os livros de história? Enfim: por que haveria ele de se questionar tanto em vez de viver numa boa? Por que, justo agora, que estava namorando com Júlia, não se abstivera de seus ideais? Por que dar murro em ponta de faca? Chegou a conclusão que cometera suicídio, e levara junto Júlia – justamente sua grande paixão. Realmente ele não merecia viver: um ser humano que, se pudesse prever o futuro, faria o que ele fez, precisa morrer; sofrer, sofrer e morrer.
    Uma alegria cálida invadiu o corpo de Winston. Ele sorriu: afinal, o mundo era justo.


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